Eunice Maia, a nossa “Maria Granel”
Para este fim de semana deixo-vos uma conversa que tive com a Eunice Maia, a fundadora da primeira loja de comércio a granel de produtos biológicos e concept store zero waste em Portugal. A Eunice é uma inspiração a vários níveis, não só conseguiu com muita persistência levar a cabo um projecto de granel em Portugal, como o fez e faz com uma consistência notável. Cada passo que a Maria Granel dá em direção ao zero waste, é feito com todo o empenho, detalhe e preocupação com um resultado duradouro e de qualidade. É tudo pensado e experimentado ao pormenor, para que quando esteja à venda nesta maravilhosa loja, nos seja entregue um produto que traz consigo, para além de um conceito, uma história para contar. Espero que gostem, porque “A Revolução começa aqui!”
Se eu assim de repente te perguntasse: Quem és tu? O que é que te vinha logo à cabeça para te apresentares?
Eu sou a Eunice Maia, a fundadora da Maria Granel. Porque a missão da loja mudou a minha vida e a forma como eu estou no mundo.
Para nós és a Maria Granel...
Sim, aqui somos todas Marias...
E antes da Maria Granel, qual foi o teu percurso até aqui?
Era toda uma outra vida, nada a ver. Nada no meu percurso dava a indicação de que eu teria uma mercearia, por outro lado, nada no meu passado esteve relacionado com activismo ambiental ou preocupação ambiental, bem pelo contrário, eu era extremamente consumista, gastava muito dinheiro em roupa, calçado, etc, foi uma reviravolta muito grande, graças à Maria Granel. E, ironicamente, eu venho de uma família, tanto do lado do meu pai, como do lado da minha mãe, de gente ligada ao campo, já de várias gerações. Essa ligação, esse apelo da natureza, no entanto, sempre lá esteve e o meu pai, desde que eu me lembro, sempre teve preocupação com o desperdício, fazia compostagem, separava o lixo, mas só recentente é que me apercebi do que fazíamos. Sempre me mantive a quilómetros de distância do compostor e na altura achava que o meu pai era de outro mundo. Hoje tenho um orgulho enorme no que ele faz (é ele que me aconselha em muitos destes assuntos relacionados com o ambiente), mas na altura não percebia e não valorizava. Curiosamente, a vida levou-me para outro lugar – para Lisboa, muito longe desse passado e dessas origens. E foi quando as nossas raízes – o meu marido é açoriano e eu minhota - falaram mais alto e que fomos buscar a ideia da mercearia, como forma de trazer um pouco desse espírito de comunidade e das nossas origens para perto de nós, em Lisboa. Eu nunca tinha ouvido falar de zero waste, nem da Bea Johnson. Foi um acaso. Estávamos a preparar a abertura da primeira loja em Alvalade, em 2015, e eu assisti a um vídeo na Internet de uma reportagem com a Bea. Quis logo saber mais sobre aquele estilo de vida e fiquei fascinada. Primeiro, o fascínio foi essencialmente – por razões óbvias – motivado pelo facto de a Bea comprar a granel e levar os seus próprios frascos. Essa descoberta foi-se transformando em aprendizagem, aplicada primeiro na nossa missão e, depois, na minha própria vida - uma mudança radical.
Apesar de eu ser professora e de aparentemente isso parecer distante da Mercearia, a verdade é que há muitos elos de ligação, pois ser professora é lançar a semente e cuidar da geração seguinte. E aqui na loja há muito de acção pedagógica.
Achas que o zero waste pode conquistar mais seguidores pela sua parte estética?
Eu acho que sim, mesmo que para algumas pessoas isso não seja consciente, é um regresso ao belo e àquilo que é mais puro e mais simples, porque é totalmente despojado. Ter um estilo de vida zero waste é encontrar a beleza nas pequenas coisas, é caminhar para esse despojamento. Num estilo de vida mais consumista, não há tanto espaço, está tudo mais disfarçado e vivemos da acumulação, sem clareza. É necessário que nos libertemos, para nos podemos reencontrar e para termos espaço para uma vida com mais profundidade.
Fazer compras a granel envolve planeamento. E isso ainda não entrou no mindset de muitas pessoas. Como resolver isso e transmitir que, apesar de todo o trabalho, pode ser bastante libertador?
É engraçado fazeres essa pergunta, porque há dois aspectos importantes quando estamos a fazer compras a granel. Primeiro, tudo isso começa em casa. E eu lembro-me de como o processo foi transformador para mim, a começar pela despensa: só o facto de ter tudo organizado em frascos já permite que acompanhes o estado do produto, que saibas se já precisas de reabastecer, qual é o uso que efetivamente dás ao produto e que percebas de uma forma eficaz como controlar e monitorizar o consumo. E depois, quando vais às compras, se conseguires trazer os frascos, melhor, mas como nem sempre é fácil, podes sempre trazer os saquinhos de pano, que são mais leves e fáceis de transportar e assim apenas compras as quantidades de que realmente precisas de cada produto, o que torna o ato de compra mais responsável e consciente. Também é uma forma de recuperarmos tradições antigas, em todas as casas havia o saco do pão, as cestas. Quando chegas a casa e arrumas tudo, não geraste qualquer desperdício e isso é uma grande vitória, acho que é também aquilo que seduz de imediato as pessoas – perceberem esse impacto.
É uma jornada e eu, que vim de outro paradigma (o consumista), valorizo e respeito muito o ritmo das pessoas– cada passo é uma vitória, cada gesto conta.
Sentes que o fundamentalismo pode afastar as pessoas deste tipo de projectos?
Sim, claro. A nossa abordagem é sempre pelo lado positivo, com muito optimismo. Até porque o importante é centrar a nossa energia naquilo que é possível. Tenho uma perceção aguda em relação a isso, porque uma loja como a nossa também gera bastante desperdício e nós temos de aprender a viver com expectativas realistas. Nunca conseguiria julgar os outros, quando sei por experiência própria que é muito difícil (impossível) chegar ao zero. Na relação com os outros, assim como acontece com a própria loja, o mais importante é tentar e ir conseguindo, é celebrar as pequenas vitórias. Creio também que é essa consciência de um certo fracasso que será sempre inerente à luta pelo “zero” que ajuda a cimentar a empatia com as pessoas. É o fracasso mais vitorioso que conheço. O zero é impossível, mas merece que lutemos todos os dias por ele.
Um dos riscos que corremos hoje é sofrermos de uma certa “eco-ansiedade” coletiva. Lembro-me sempre da citação da Anne-Marie Bonneau (Zero Waste Chef), que fizemos questão de partilhar: “ Nós não precisamos de um grupo de pessoas a praticar zero waste de forma perfeita; nós precisamos de milhões a fazê-lo de forma imperfeita”.Acredito muito nisso, no poder dos pequenos gestos imperfeitos. E, por esse motive, condeno veementemente qualquer abordagem fundamentalista.
Aqui na loja, quando abrimos as portas, no início, ninguém trazia os seus próprios recipientes, até que, um dia, um senhor, que estava familiarizado com o conceito BYOC (bring your own container) dos tempos em que esteve na Bélgica, passou a trazer os seus frascos para fazer as compras. Esse exemplo ajudou a contagiar a comunidade. As pessoas começaram a ter orgulho em trazer as suas próprias embalagens, começaram a fotografar e a partilhar nas suas redes sociais e isso passou a ser “cool”. E émesmo importante que a ecologia se torne “cool”, para “contaminar” cada vez mais gente. O poder do exemplo.
E voltando a ti agora, quais são as tuas rotinas, as tuas mudanças para contrariar este modo de vida cada vez mais acelerado? Como encontras o teu equilíbrio? O que é que te gera mais “eco-ansiedade”?
Estamos a falar de uma jornada imperfeita que tem 3 anos. Foram mudanças muito lentas, muito graduais, mas eu orgulho-me disso, porque foi precisamente por serem passos conscientes que a mudança se enraizou. Foi acontecendo em casa, divisão a divisão; comecei pela cozinha e a última foi a casa de banho, que foi a mais difícil. Fui detetando as fontes de resíduos e procurando reduzir, substituir por alternativas com menos impacto.
Em relação ao meu equilíbrio, sou uma pessoa muito reservada, de fé, muito contemplativa, muito otimista, é isso que me dá força.
O que me gera mais “eco-ansiedade” são sobretudo imprevistos, quando as coisas saem fora da nossa planificação. Depois há toda uma aprendizagem que eu tenho tido ultimamente no contacto com outras pessoas, por exemplo, no trabalho, procuro não impor absolutamente nada e tenho aprendido que o exemplo silencioso é o mais poderoso e eficaz. Em casa, o meu marido não tem exatamente as mesmas preocupações ambientais que eu. E é uma lição de humildade, porque, embora não concordemos, a verdade é que ele também me ajuda imenso a equilibrar e a trazer os pés à terra, a não ser fundamentalista e a respeitar o caminho e o ritmo dos outros.
E quando viajas? Também te sentes fora de pé?
Aí é quando os meus níveis de “eco ansiedade” atingem o pico, porque estou fora do meu elemento, das minhas rotinas. Tento fazer escolhas o mais conscientes possível. E, apesar de não conseguirmos a mesma planificação, é uma boa altura para fazer a tal terapia colectiva de que não conseguimos controlar tudo.
E sem limites à imaginação, como seria o futuro deste planeta se o pudesses definir agora?
Eu acho que nós podemos defini-lo agora, eu acredito muito naquilo que estamos a fazer enquanto sociedade e tenho muita esperança. Como Professora, o facto de lidar com esta nova geração leva-me a acreditar que é possível um mundo melhor. Este último movimento da greve estudantil pelo clima comoveu-me muito. Tenho alunos que participaram e que querem muito fazer alguma coisa de importante. Nós não podemos desperdiçar essa energia, há que a canalizar para este bem maior. Eu diria que esta casa, causa comum, tem mesmo de ser a nossa prioridade.
E já estão a acontecer várias mudanças, 2018 foi um ano de viragem, a todos os níveis e por vários fatores: as normas e prazos impostos pela União Europeia aceleraram a mudança e forçaram os estados a eliminar descartáveis; a publicação da edição da National Geographic “Planet or Plastic” colocou o assunto na ordem do dia, despertou a comunicação social e a consciência coletiva da sociedade.
E tudo isso me enche de esperança. A mudança está a acontecer.
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